quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Na Noite Terrível

Álvaro de Campos

Na Noite Terrivel

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.




Daí que é o seguinte... Ao mesmo tempo que se pensa que no futuro arrepender-se-á de tudo que não foi feito, seria possível que não pensemos no presente? Estaria correto Schopenhauer ao dizer que 'um vida feliz é impossível. o máximo que se pode ter é uma vida heroica'!?
Por vezes penso que sim, por outras tantas penso que ele não passava de um louco, virgem e infeliz! Não sei como foi a vida sexual dele, rs, mas louco e infeliz tenho certeza que foi...
Mas a cada vez que leio esse poema mais me convenço de que Fernando Pessoa estava absolutamente certo - como se eu pudesse falar que um cara como esse possa estar errado - enfim, a cada nova leitura, e são tantas... mais tenho certeza disso tudo, de que as únicas coisas realmente mortas são aquilo que não vivemos, logo não sabemos como foram em sua hipotética existência!
É estranho porque daí dói, dói saber que precisamos viver tudo para que não nos arrependamos de nada, não penso que seja dor, desespero, essa é a palavra. Desespero-me em ter que viver tudo, e eu preciso, quem não precisa? Quem se acha bom o suficiente pra jogar no esgoto o único momento certo que se tem na vida?
O mesmo filósofo, cujos dizeres estou retirando de 'A Cura de Schopenhauer' e não por conhecê-lo de verdade, disse o seguinte: "A maior sabedoria é ter o presente como objetivo maior da vida, pois ele é a única realidade, tudo o mais é imaginação. Mas poderíamos também considerar isso uma maluquice, pois aquilo que existe só por um instante e some como sonho não merece um esforço sério." Putz, como eu o achei contraditório e como eu concordo em absoluto com toda essa contradição...
Quando se muda um pouquinho do presente mexe-se com todo o futuro, não é mesmo? Mas é isso, cadáveres, sonhos, realidade, verdades, mentiras, quem somos nós?